CONSTRUINDO SONHOS
A INFLUÊNCIA DE MANUEL VICENTE
O Manuel Graça Dias foi colocado a dar aulas em Alcanena em 1977, no ano em que estava terminar o curso e no seu caminho diário para Alcanena, e nos tempos livres fazia diversos desenhos conforme Jorge Figueira (2011) descreve “desenhava coisas dos anos 1940 e 1950, marquises de ferro, platibandas, varandas, guardas e fazia composições a partir daquilo (...)”, resolvendo aproveitar esses desenhos para o seu trabalho final de curso, influenciado por Manuel Vicente (1934-2013) lhe dá a conhecer no livro Learning from Las Vegas. Segundo Jorge Figueira (2011) o ar-quiteto Manuel Vicente apresenta este livro a Manuel Graça Dias numa “tentativa de encontrar linguagem popular para a arquitetura”, incorporando o que este já observava diariamente acerca das construções sem arquiteto – as “casas de emi-grantes” e as “casas clandestinas”.
O Manuel Vicente convida em 1978, Manuel Graça Dias a juntar-se a si em Macau, num desafio de começar a fazer em Macau o mesmo que já fazia no seu camin-ho diário para Alcanena, o de sair para a rua e desenhar, montando ao final do dia composições gráficas com o material recolhido, nascendo assim Macau Glória: A Glória do Vulgar, um livro que foi produzido em 1978, mas só seria publicado em 1991. O livro consistia num ensaio visual, montado a partir de um conjunto de im-agens fotográficas de diversos detalhes da arquitetura corrente de Macau, organi-zando-se em três partes - a aproximação do olhar, a rua e as coleções -, partindo de uma experiência-piloto de dar conhecer o “levantamento do património cultural”
(Graça Dias; Vicente; Rezende, 1991).
A Glória do Vulgar tinha como objetivo “mostrar com afeto uma cidade tal como os olhos de um observador que passeie por ela poderia apreender”, ou seja era um trabalho que perguntava a si mesmo, “como mostrar Macau, como mostrar a arquitetura, como se mostrar” (Graça Dias; Vicente; Rezende, 1991).
Já de regresso a Portugal em 1979, Manuel Graça Dias participa em “Arquitetura em debate”, um encontro de estudantes e arquitetos em Aveiro que tinha como objetivo repensar a prática arquitetónica do pós-25 de Abril. Neste encontro o depoimento de Manuel Graça Dias foi apresentar uma série de colagens do que observava da “arquitetura dos não arquitetos” (Graça Dias, 1989) em Portugal, no sentido já de curiosidade e de admiração sobre o tema, e do que já tinha ensaiado em Macau.
CASA DO EMIGRANTE E CASA CLANDESTINA
Manuel Graça Dias em 1982, voltava a assinar um outro ensaio visual acerca das construções sem arquitetos, para acompanhar um texto de José Manuel Fer-nandes, para a revista SEMA, sendo que o artigo consistia numa reflexão sobre o fenómeno das casas de emigrantes e tinha como título “Notas sobre a c.e, onde José Manuel Fernandes assinava o texto e Manuel Graça Dias ilustrava. O artigo apresenta diversos pedaços de textos e imagens fotográficas coladas, onde se sobrepunha uma séries de ilustrações e de alguns desenhos esquemáticos sobre estas construções e seus materiais (Fig. 2), destacando-se “pele de girafa” (Graça Dias, 1982), termo utilizado por Manuel Graça Dias para efeito final da aplicação dos restos de mármore nos revestimentos destas casas de emigrantes, mas tam-bém nas casas clandestinas (Fig. 3).
O efeito “pele de girafa” (Graça Dias, 1982) (Fig. 4 e Fig.5) surge a decorar as pági-nas do artigo e terá partido da observação recorrente neste tipo de construções, sendo possível observar numa legenda de uma das ilustrações de Manuel Graça Dias – “lâminas de pedra decorativa girafa (juntas: negro)” (Graça Dias, 1982), sendo explicado no texto de José Manuel Fernandes como “(...) formas que se voltam a ir buscar por terem já dado boas respostas: simetrias/ repetições/ entrada princi-pal/ entrada secundária/ escadarias/ colunatas/ arcos/ muros/ decoração/ ilusão (grandes painéis pele de girafa economizam uma parede de pedra a sério -, o dis-curso vai-se espaçando, rareando, esquecendo do pretexto, simbolizando, daí ser discurso...).”
A mensagem destes diversos artigos sobre arquitetura popular durante década de 80 pretendiam mostrar uma exploração livre para os arquitetos, exigindo-se a estes a mesma liberdade formal de que os atores não-qualificados, e que estes eram os grandes agentes de transformação do território, para José Manuel Fer-nandes (1982) “não queremos que se aprenda com os emigrantes, com as casas dos emigrantes, queremos que se re-aprenda, re-tome e re-lance a arquitectura
Figura 2 – Ilus-tração das casas de emigrante e casas clandestinas (1982).
Fonte: SEMA, Notas sobre a c.e., Junho 1982.
Figura 3 – Arquite-tura sem arquitetos, clandestinos ur-banos (1996). Fonte:
Stills do website Arquivo RTP.
(...) como os emigrantes, clandestinos e outros têm ensaiado na edificação dos seus símbolos sociais.”
As casas de emigrantes e as casas clandestinas tornaram-se numa espécie de “tema recorrente”
(Figueira, 2014) no início da década de 1980, sendo Manuel Graça Dias um dos observadores críticos e curiosos desta arquitetura sem arquitetos, que manifestava uma profunda transformação no que caracterizava Portugal no pós-25 de Abril. Para Manuel Graça Dias “depressa tudo deixou de ser como era ou pensávamos que pudesse ser”, escreveu no artigo Arquitetura Popular, para o Jornal de Letras em 1985, para este as chamadas casas de emigrantes e casas clandestinas representa-vam no final do século XX, a “verdadeira arquitetura popular portuguesa” (Graça Dias, 1985), um fenómeno que os arquitetos não podiam deixar de ignorar, pois era observado em vários pontos do território, de norte a sul de Portugal, e que tinha uma acelerada reprodução. Estas construções sem arquiteto interferiam diretamente com o campo de ação dos arquitetos portugueses, com a qual estes teriam que começar a aprender a lidar, sendo que Manuel Graça Dias ficava fascinado com a liberdade e o descomprometimento em relação à arquitetura estabelecida segundo Jorge Figueira e Nuno Lourenço (1988).
Para ilustrar a sua ideia do que era a arquitetura dos clandestinos, recupera do Inquérito à Arquite-tura Popular Portuguesa de 1980 uma definição sobre arquiteArquite-tura popular: “a arquiteArquite-tura popular regional não é urbana de origem nem de tendências. Pode urbanizar-se, melhorar de cuidados construtivos e apuros formais, mas, se lhe cortam as raízes que a prendem à terra e aos seus prob-lemas, desvirtua-se, perde a força e a sua autenticidade.”
A arquitetura popular seria questionada por Manuel Graça Dias ao longo de toda a década de 80, num pensamento crítico, tendo sido uma questão particularmente desenvolvida na sua Prova de Aptidão Pedagógica e Capacidade Científica, defendida em 1990, com o titulo do trabalho síntese O acaso e a vontade (vocábulos clandestinos).
O PROGRAMA TELEVISIVO – VER ARTES
No início da década de 1990, um programa de televisão – o magazine cultural Ver Artes – permitiu a Manuel Graça Dias debater e partilhar a sua visão da arquitetura portuguesa, num exercício já an-teriormente realizado por si nos diversos ensaios para artigos sobre a arquitetura popular e na sua prova de aptidão, numa confrontação e questionamento sobre esta. Este programa de televisão tratou-se de 83 episódios totalmente dedicados ao tema da arquitetura, onde Manuel Graça Dias reproduz a sua própria interpretação da arquitetura, da sua observação do que o rodeia, sempre num olhar critico, partilhando com arquitetos e não-arquitetos a sua interpretação.
A estreia na televisão ocorre a 16 de Dezembro de 1992, onde intitula o primeiro episódio com uma pergunta – O que é a Arquitetura? -, esclarecendo a diferença entre arquitetura e construção, onde definia por construção “ a capacidade do homem em rodear as suas atividades de um abrigo que impeça a adversidade da natureza” (Graça Dias, 1992), e por arquitetura a atividade que iria “dar sentido a esses abrigos”. (Graça Dias, 1992)
Ao longo dos vários episódios foram surgindo diversos temas como o espaço urbano, a vivência das cidades entre outros, destacando-se dois episódios sobre a ocupação do território, da “ar-quitetura dos não arquitetos” (Graça Dias, 1989) com as casas clandestinas - Arquitectura sem arquitectos, clandestinos urbanos (parte I e II), fenómeno que durante décadas foi sendo ignora-do por arquitetos e poder político. Estes ignora-dois episódios constituem um apelo a que “nos deixe-mos fascinar e contaminar” (Graça Dias, 1996) pela arquitetura dos clandestinos, construções em concelhos limítrofes de Lisboa.
“Falemos de arquitetura sem arquitetos, falemos de clandestinos” (Graça Dias, 1996) – começa en-tão Manuel Graça Dias a narrar em voz-off – “gente simples, desconhecedora dos códigos eruditos, manuseia os signos com a liberdade e a inocência desse conhecimento” (Graça Dias, 1996), preten-dia defender o que vinha observando há alguns anos, de que os clandestinos eram a “verdadeira arquitetura popular portuguesa” (Graça Dias, 1985), fazendo diversas referências teóricas ao longo dos dois episódios, com citações de Umberto Eco, Ludwig Wittgenstein, Leonardo Benévolo, Ro-berto Venturi, Theodor Adorno e John Dubufett, numa tentativa de sensibilizar os arquitetos para o valor deste tipo de arquiteturas, numa tentativa de mostrar “(...) o que de belo nos tinham para dar as arquiteturas populares(...)” (Graça Dias, 1996).
Ao longo dos dois episódios as casas clandestinas parecem esteticamente apelativas, assumindo diversas cores, formas e decorações, construídas sem qualquer norma arquitetónica ou estética, com total liberdade na escolha dos materiais e sua aplicabilidade, para Manuel Graça Dias o que encantava “mais na arquitetura dos não arquitetos, é esse descomprometimento com cultura cor-rente (...) que os faz ter descobertas geniais (...). Há sempre qualquer coisa que é surpreendente na sua divergência, face ao sistema formal que temos” (Graça Dias, 1996).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O programa televisivo – Ver Artes – procurou sempre responder as questões da arquitetura, representando múltiplas manifestações culturais, das mais eruditas às mais populares, sendo uma espécie de abertura ao debate arquitetónico em Portu-gal, tendo em foco a arquitetura popular, dando a conhecer o que estava à vista de todos, mas que era ignorado ou esquecido pelos arquitetos.
Curiosamente, as referências que Manuel Graça Dias faz nos diversos ensaios sobre o que observa desta arquitetura popular - casas clandestinas e casas de emigrantes -, dos materiais usados e sua aplicabilidade, é mais tarde observado em alguns dos seus projetos arquitetónicos, destacando-se o projeto da sede da Ordem dos Ar-quitetos (1991-1994) em Lisboa, em que no interior é possível ver replicada a “pele de girafa” (Graça Dias, 1982) tão presente nos revestimentos das “casas clandestinas” e
“casas de emigrantes”.
BIBLIOGRAFIA
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DIAS, Manuel Graça Dias (1992). Vida Moderna. Mirandela: João Azevedo Editor.
DIAS, Manuel Graça Dias (1999). Ao Volante pela Cidade. Lisboa: Relógio D´Água.
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Ver Artes: Arquitectura. Lisboa: RTP2, Produções Zebra.
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DIAS, Manuel Graça; VICENTE, Manuel; REZENDE, Helena (1991). Macau Glória: A Gloria do Vulgar. Lisboa: Institu-to Cultural de Macau e Fundação Calouste Gulbenkian.
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FIGUEIRA, Jorge (2011). Reescrever o Pós-moderno. Porto: Dafne Editora.
FIGUEIRA, Jorge (2014). Periferia Perfeita : Pós-Modernidade na Arquitetura Portuguesa Anos 1960-1980. Lisboa:
Caleidoscópio.